Peão de boiadeiro
Foto: Thaiany Regina / Rural Centro

Nasceu para ser peão, usava botas surradas com saltos pensos para os lados de tanto pisar torto. Fumava um paieiro atrás do outro. Na verdade, dizia pitar ao invés de fumar. Interessante era seu hábito de apertar a brasa do paieiro com a unha do dedão da mão para evitar que o mesmo se apagasse.

Desde menino – no interior de São Paulo, cidade de Valparaíso, ainda quando sertão  aprendeu a arte de laçar bois e domar animais xucros, tais como burros e cavalos.

Só conversava sobre o que mais entendia – a doma de animais. Só tirava seu velho chapéu, marcado nas abas pelo suor da lida diária, quando passava na frente de igreja, quando cruzava com um velório ou diante de um cemitério. Sua guaiaca maltratada, seu esgarçado lenço no pescoço e o rosto com vincos profundos, marcado pelo tempo, completavam a silhueta de um homem forte e confiável.

Dizia-me não guardar mágoas, apesar de não lhe faltar motivos. "Ter ressentimentos seria a mesma coisa que tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra", dizia-me o velho peão!

Ao referir-se ao seu passado, quase sempre seus olhos miúdos marejavam e disfarçadamente me dizia estar resfriado ou com ardência nos zoio, enquanto os enxugava na costa da mão ou na manga da camisa. Bem sabia ele que “a lágrima é o sumo que sai dos olhos quando se aperta o coração”!

Doma racional evita acidentes e prolonga vida útil de cavalos

Tinha muitas histórias para contar, dizia-me que conversava com os animais antes do início da doma e nunca os judiava. Por isso que, uma vez amansados, se tornavam dóceis e bons de lida, como gratidão ao amável domador. Nas poucas conversas que tivemos, eu viajava no tempo porque meu pai, quando jovem, teve seu lado de domador por um período de vida e aquele típico palavreado me soava familiar, além de saudosista.

Por amor à profissão, sacrificou a família fazendo viagens intermináveis, pois sabia a data de sair de casa, mas nunca a de voltar. Certamente por isso muitos o chamavam de “bandoleiro”, inclusive sua própria família.

Confidenciou-me, certa feita, ter sido homenageado por uma dupla sertaneja de renome através da composição de uma música chamada Boiadeiro do Norte, que ele, com seu velho e desafinado violão, insistia em dedilhar sempre que tomava uma boa dose. Dizia-me que bebida de homem tinha que ser pinga - e das fortes!

Lembro-me apenas de um trecho de sua cantiga: “Eu nasci para sofrer até na hora da morte. Eu também queria ser um boiadeiro do Norte. Quando ele dorme em cima do baixeiro com seu cavalo ali perto pastando, sua cabocla que ficou tão longe... Ele dormindo com ela sonhando”. E assim emocionadamente seguia cantarolando.

Música Boiadeiro do Norte, na versão de Tonico e Tinoco: canção teria sido feita em homenagem ao domador de burro xucro.

+ Leia a crônica "Tonico e Tinoco - Inesquecíveis", por Osvaldo Piccinin

Com certeza já partiu desse mundo. Quando o conheci já beirava setenta anos. Nesta ocasião, era apenas “retireiro” de uma grande fazenda de gado no estado do Pará. Vivia só num casebre de pau a pique e queimando lata  como me dizia, fazendo a própria boia. Como companhia, tinha apenas um guaipeca e um papagaio barulhento. Guaipeca valente e caçador de onça, dizia-me referindo-se ao seu inseparável cãozinho multi-raças.

Dono do seu próprio destino, nutria a esperança de juntar uns trocos e voltar para o pago onde nasceu e lá encontrar tudo como havia deixado há quase trinta anos – família e amigos. Doce ilusão, amigo, o tempo passou. Nossa história, boa ou ruim, foi ou será escrita nessa breve passagem chamada de vida!

E VIVA O BANDOLEIRO DOMADOR!

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